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                                      pés descalços

 

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A gordura d´água do Socó, aquela gordura que cobria um mundo, deixava a outra margem magrinha, quase inexistente, uma coisa apenas imaginada. Por todo o seu curso a terra se fazia céu, como uma chapa manchada, terçado de muitas ranhuras, eternamente mutável, aos modos da vida e do tempo, usado tantas e tantas vezes. Mas ainda havia, quase percebia, a linha borrada, escura, a outra margem, fazendo lembrar que o mar não era mais que rio.

A linha borrada, entre matéria e miragem, sugeria o futuro, o amanhã, qualquer visão de permanência. Sobrevivência. Do outro lado só havia mato, mas o traço escuro, como um signo antigo que em si resumia uma ação ou solução, significava um passo largo, ganhar distâncias. Deixar Saguaçu. Talvez envelhecer, ter filhos, histórias para contar. Mas tudo isso dependia de que continuasse ali, palmilhando o chão, primeiro por algumas horas, exatamente como uma criança, frágil, calculando os primeiros passos.

Depois, de alguma forma, ainda era preciso que fosse embora.

O vento mexia com o seu cabelo. Passava estreito enroscando-se nas narinas, entrava e saía pela boca, largo como o último suspiro.

Os pés apalpavam o frescor da água, a aspereza dos grãos de areia. A palma aberta esperava, sentia o ar, voltava a desaperceber as coisas. Um apito. Vozes de crianças brincando. O toque do tecido sobre os joelhos. Voltou a olhar para baixo. Havia um resíduo orgânico, farofa de folhas, galhos e matéria morta que se irmanavam, oscilante, com a unidade de um cardume, movendo-se ora lenta, ora afobadamente, vem, e vai, e vem, e vai, colorindo as dobras das pequenas ondas. Inspirava, expirava, e sem pensar numa solução continuava, oco, olhos presos à outra margem.

A vida balançava, mole, com a fragilidade de um fio, e em cada palmo de chão descansava uma ameaça, não antes, há dias ou horas atrás, mas agora, na realidade recente, experiência que começara há vinte minutos atrás, talvez menos, depois do recado ao pé da mesa. Os pensamentos caminhavam como pesadas nuvens, sombrios colossos a murmurar numa morosa manada. Já não podia continuar ali. Candinho pensou em dois nomes, Juliana e Tico da Ribeira, e imediatamente deixou o cais.

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O bar do Santo era um barraco de sete mesas pouco abaixo de um talude. O povo todo conhecia tanto o bar quanto o barranco. Do barranco saltaram, empurrados ou por vontade própria, imaginando-se caburezinhos, uma ampla gama de pessoas. Ricos, matadores, lavadeiras. Miseráveis.

“ Essa gente pensava que tinha asas”.

Era o comentário de Baré, um homem muito antigo, o seu mais velho frequentador. Ninguém sabia o seu verdadeiro nome, quem eram os seus pais, que passos seguira na longa vida, como viera parar em Saguaçu. Mas existiam as histórias. Tinham as mais variadas cores, como peças que não se encaixavam. Em algumas, figurava como matador sanguinário, regenerado, entocado na vila há décadas; em outras, como simples caboclo, perseguido em outros tempos por fazendeiros. Estranho que assim acontecesse. Vez ou outra arranjava briga. Há quem dissesse que ali mesmo, certa noite, ele calara um canoeiro tagarela. Baré também contava histórias. Era tão velho quanto o ar, e falava de nomes que as pessoas desconheciam, gente que se perdeu, consumida, na conquista da terra, gerações de fantasmas que se sucediam, na anônima e pouco glamorosa saga da vila. Em cada fim de tarde buscava a mesma mesa, se acomodava, citava solenemente um nome. As pessoas paravam para escutar, porque a conversa se enamorava da sina de cada um. Havia alguma parecença entre todas as histórias, todas composições estropiadas de um mesmo trem, linhas de um conto antigo, a colonização da Amazônia, o contato gauche entre povos tão distintos.

Mas Baré não estava ali no começo da tarde. O sol seguia a sua sina, despencando sobre as superfícies, causando vertigens, quando um corpo magro escorregou para dentro do barraco. Na sombra descansavam outros corpos, com preguiça de falar, até mesmo de respirar. Qualquer brisa era bem-vinda. Candinho apoiou-se ao balcão, escorado no estratégico ângulo com a parede. Ali percebia todas as coisas, quem chegava e quem partia. Pegou a carteira e pediu uma dose.

“Oh Santo, o Tico teve aí?”

A cabeça fez que não. Santo também preferia ficar quieto. Uma moto passou acima deles, e a catinga de diesel despencou barranco abaixo. Tardou um pouco até que o zumbido elétrico morresse por completo. No silêncio continuava, ainda, o conversar dos pássaros e o mastigar de um homem na mesa ao lado. Foi só depois do segundo gole que lembrou do longo jejum. Lapso perigoso. Pensava nisso quando, na mesa ao lado, os dentes pararam de morder. Por um instante o silêncio pareceu absoluto. Não sentia estar sobre a Terra. As tábuas então rangeram de forma grave. O homem que mastigava limpou a boca com as bordas da camisa. Candinho ameaçou levantar, mas sentou de novo. Com o olhar distraído de uma varejeira percebeu o vulto, - ou aparição? - um segundo homem, careca, que subitamente o encarava. O par de olhos não se desviava dele. Quem seria? Não reconhecia o rosto, mas era possível que conhecesse. Por que olhava tão insistentemente? Continuava assim, de tal forma absorto, que sentiu um arrepio subir pela sua espinha.

“Então foi isso que aconteceu”

Duas pessoas chegavam, sentando-se em uma das mesas. Conversavam em voz baixa, como se estivessem na igreja.

A segunda dose distendeu o cabresto e ele mergulhou numa lembrança, ou talvez não propriamente nela, mas num pensamento que casava com o instante. Sentia aquele caldo grosso, o aroma morno de um conceito que nunca fora dele, mas que agora tomava emprestado.

A vida é uma melancólica sucessão de cenas, exatamente como nos filmes. Em cada uma delas ocorre uma pequena morte. Na primeira se encontram grandes amigos. Um dos atores não estará presente depois, não com a mesma intensidade. Em outra cena, trava-se contato com divertimentos, nas primeiras luzes da juventude, meninice que também é vida e morte num só tempo, frágil desabrochar de uma rosa. Na terceira enxerga o vô Nésio, que mais tarde se vai. A escola também se despede, como o curso preparatório, a primeira namorada, a casa da infância. A verdadeira beleza só se reconhece tarde, na natureza de uma memória. A singularidade somente se faz notar quando morta, extinta do mundo, com as cores de uma miragem.

Era mais ou menos isso o que contava o vô Nésio, mas com outras palavras, algumas tortas e emendadas, neologismos, e umas poucas inspiradas, pescadas num momento que não voltava. A imagem talvez viesse dos seus avós, ou de tempos ainda mais antigos.

“ É tudo coisa que vai embora, Candinho, entende?”

Ele custou a entender. Vô Nésio falava do jeito dele, sempre repetindo. Na cabeça velha descansava a ideia. Foi só depois de muito tempo, já homem feito, que ele uniu as pontas entendendo o todo.

Onde estaria o pai de seu pai? Embaixo da terra. Fechou os olhos lembrando das paredes escuras, de ângulos cobertos de fuligem, do tic tac do relógio, da foto branco e preto, sem moldura, antiga que só, pendurada na sala de jantar. Os tios apareciam ali, moleques, e havia ainda pessoas que ele não conhecia, fantasmas que habitavam esse passado. Queria um minuto de conversa com o velho, não para fazer perguntas, mas para viver as coisas mortas, lançando um brilho sobre o cotidiano que tateava com olhos e dedos.

Como teria sido a infância, a juventude do vô? Ele pouco falava de si, mas a julgar pela mensagem que passava, com jeito de mantra, havia algo lá atrás, um grande amor, alguma experiência que queimara a sua retina com a memória. Mas o vô Nésio era assim, abraçava-o com um olhar caloroso, mas se largava no sofá, mole e calado, acompanhando na tevê antiga os jogos do Payssandu. As pestanas mais tarde se encontravam e ele escorregava num cochilo.

A pintura mais expressiva de uma pessoa, imposta como tatuagem ou cicatriz a queimar a retina, definitiva síntese do organismo humano, talvez seja a sua versão mais dramática, apresentada na longa linha da vida. Candinho assim pensava, a julgar pela memória que guardava da tia Lourdes, figura habitualmente pacata, que na avançada velhice desabou, mergulhando numa loucura sem trégua. Já na sua cabeça, e para sempre, não mais se apresentava a mulher ponderada, última palavra nas discussões, repetindo-se tão somente os momentos histéricos, povoando o seu pensar por semanas, quando, gritantes, aconteciam, nos tempos em que ainda era viva.

Com o outro não acontecera assim. O descontentamento era um lago escuro no coração do vô. A sua índole não mudava. Ao invés disso, os anos somente acentuaram o retraimento particular. Ele se instalava no mesmo canto, falando cada vez menos, até que um dia calou para sempre.

Mas por que pensava nessas coisas?

Baixou a cabeça em direção ao copo de conhaque, bebeu um longo gole. De olhos fechados, pensou na lembrança recente que mudara a sua vida: ...

 

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Baixou a cabeça em direção ao copo de conhaque, bebeu um longo gole. De olhos fechados, pensou na lembrança recente que mudara a sua vida: ...

  

 Há uma, duas horas atrás, ele segurava uma bandeja cheia. A fazenda do Seu Teodoro estava cheia de visitas. Os carros estacionavam no gramado a frente do casarão. Ao longo das mesas, as pessoas comiam e conversavam. Ele sentiu um vento fresco, coisa de um segundo. As portas e janelas eram tão grandes que, apesar das grossas paredes, o ar batia asas, livre como um passarinho.

Como um passarinho.

O seu Valter veio da entrada coxeando. Não parecia ter intenção alguma. Aproximou-se perto dele e então disse:

-O Bento caiu.

A frase pareceu-lhe absurda, como um boto que cavasse a terra. A ponta dos dedos formigava, leve e sem peso, carne esquecida de existir. Foi descendo a bandeja lentamente, até descansá-la sobre a mesa. Olhou a porta da cozinha e recuou com uma calma que não tinha. O seu Valter continuou parado com os seus olhos cansados. Na cozinha respirou fundo. Estava só, ainda que por alguns instantes. A conversa das mulheres chegava aos seus ouvidos, desleixada, sugerindo calma. Enxergou o céu e a floresta recortados na parede e, depois de um suspiro, saiu. Queria bater asas com a leveza do vento do corredor. A princípio andava manso, sem olhar para trás, mas logo começou a correr, cabra desembestada, na irrealidade líquida, escorregadia, do ser e não ser, de um tambaqui que sente uma mordida.

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A sensação estranha povoou um pedaço da cabeça. Mal conseguiria explicar a natureza daquela percepção. Palavras como dor e coceira ajudavam pouco, se decidisse contar a alguém. Uma experiência muda ao vocabulário humano. Entranhou os dedos nos cabelos quebradiços, ainda assim brilhantes e negros como os da falecida mãe. O tato encontrou a formiga pequena e preta. Como fora parar ali? Estaria ficando louca? O bichinho na palma da mão sugeria que não. Talvez tivesse caído de uma árvore, dos ramos verdes que emolduravam cada ângulo de Saguaçu. Uma formiga, vejam só. Não contaria essa história para ninguém.

Um comichão tocou-a para fora antes do esperado. Costumava fazer mais tarde o seu intervalo. Não era a formiga morta quem motivava aquele movimento. Acendeu um cigarro no corredor atrás da escola. Ali se dependuravam os panos das casas pobres, roupas feias balançando ao vento. O esconderijo íntimo era, com certeza, um dos piores que poderia imaginar, mas a faxineira relaxava sob a fumaça do cigarro. Por que inventavam lugares como aquele? A floresta, sim, tinha a sua verdade própria. Mas logo acabaria o dia, e depois chegaria o sábado. Um respiro. Descanso no sofá, falatório do tio Zima e tudo o mais. Fumava olhando a rua depois do muro. O seu Candinho passava sempre naquela hora contada. Por que não o percebera? Talvez estivesse distraída. Não era verdade. As pálpebras se afastaram em olhos agudos, arregalados, tocando o colégio, as casas, as nuvens, até a estrada. Na sina de tomar pancadas, ela pouco abria as asas daquela forma. O espinhaço se retificava, num despertar de eras, quando percebia o prolongamento do seu corpo ameaçado, aquela carne um dia íntima, germinando na sua barriga, mas que agora seguia longe, por terrenos às vezes esburacados.

Pensaria mais um pouco nas próprias cismas, mas a colega chamou para o trabalho.

 

*   *   *

Quantas vezes fizera tocaias? Fantasiou que a faca, a pistola, o laço, mesmo uma cadeira que aparecesse no caminho fossem as suas únicas companheiras, personagens mudas ajudando a completar o seu trabalho. A solidão se ligava a ele desde as primeiras lembranças, nas surras do pai bêbado, no silêncio da mãe, no dia em que fugiu de casa. Tatu-bola, escondia-se sob a dura cútis e assim ficava. Um dia reconheceu a casca, concha onde recolhia as suas partes. A essa altura já era tarde, não se permutava em outro, um homem grande, desconjuntado, de olhos tortos, olhos tortos de verdade, porque uma pálpebra pesava sempre mais do que a outra. Havia também as feridas na alma, coisa que não sabia explicar. Apanhara do mundo, noite e dia, até reconhecer o couro, cristalizado, entranhado no seu jeito de ser.

Numa noite depois de um serviço encontrou sombra e água fresca. Um refúgio. Parou no bar para beber. O coração ainda batia acelerado, mascando a febre da vida que despachara. A barra da calça tinha um vermelho sujo, mancha que mal se via. Isso pouco importava; logo iria para casa. A mulher de uma mesa adiante sorriu para ele. Talvez não fosse a mais bela princesa, a dama do maior castelo, mas o sorriso era bonito. Sempre gostara da boniteza, detalhe raro no seu caminho. No entanto, lá estava ela, sorrindo. Isso nunca havia acontecido. Sim, havia as quengas. Elas as vezes riam, mas somente por dinheiro. Acompanhavam-no até o último drink e nada mais. Com Diana foi diferente. Ela continuou com aquela prova de alegria órfã, confiante, aberta em flor, a espera de um acalento. A órfã mais linda do mundo, beleza rara que vira. Que gana de cuidar, de levar para casa! Dividir com ela planos, falar de coisas desconhecidas. Diana. Essa era a rosa que colheu, porque eram tão poucas pela estrada. Levantou, foi para a mesa dela, e sua vida nunca mais fora a mesma. Percebeu a única existência que merecia preservar. Talvez não mais agora, na noite fria sem pai nem mãe. Mas o que fim levariam aqueles seios pequenos, o ventre de poucos pelos? Confundia-se. Sim, queria leva-los como lembrança querida, bagagem da errancia triste. A dor pedia isso, uma dor de natureza até então desconhecida, porque as outras, toda uma sorte de sofrimentos, eram da pele e dos ossos e não do bem querer. Querer. Sim, ele queria, ou quisera essa mulher, em algum tempo.

Ah, mas teve raiva. Quando acontecia, fazia melhor o seu trabalho. Quando buscava animo, lembrava da execução de Zé Carneiro. Agora, porém, era diferente. O calor chegava, mas dobrava frouxo os ombros, caindo dentro de si mesmo. Com Zé Carneiro estava inspirado. Abria o corpo com finas linhas, besuntando-o com pinga e canela. Pinga boa aquela. Experimentava ouvindo uma canção de brega. Ria-se de bêbado, desfrutando, com a viagem da música, com a agonia do homem. Por fim, cortou os bagos do traste, estendeu na grelha, depois jogou para os cachorros da casa, um sitio afastado onde estava. Os animais cheiraram, provaram, lutaram pela carne. Zé Carneiro mal pode ver, esvaziando-se no rasgo do próprio sexo.

Mas matar não arrumava nada. Não agora. A coisa feita não volta trás. É uma terra que não se espana, ficando marcada para os mateiros, para a consciência, para todo o sempre. As mortes lhe ensinaram isso, porque a morte também é uma só. Toda tristeza funda é uma pequena morte, e sentia-se de novo órfão, como por quase toda a história.

A lamina duplicou o chumbo do céu. Bom era aquele ferro, velho companheiro seu. Não, não existia nada nobre, louvável e feliz, na arma e no dono, acocorados, no mato da própria casa, figuras anônimas e envergonhadas, tentando uma confirmação. Mas, ainda que de cócoras, de qualquer jeito, continuava sendo Antônio, o Pereba Seca. Não havia quem desconhecesse nas ruas, nas vilas vizinhas. O seu nome era uma lenda. Mudavam de calçada quando passava. Peões e coronéis morreram nas suas mãos. Desceu os olhos pelo tronco largo e forte, mestiço das três raças, mas de novo não respirou o orgulho.

E se outra coisa tivesse acontecido, se tudo não passasse de um mal-entendido? Acendeu o cigarro para não pensar. A brasa do cigarro. Tentava se prender às coisas, ficando assim, vazio. No seu mundo cinza, de decaído, a casa fora até agora o bem mais precioso, como Diana. A única coisa limpa. Voltava a tocar a ferida, como cachorro que se coça.

Uma voz deixou janelas. Vinha da boca de uma mulher. Pensava nas suas mãos, mas não teve vontade de usá-la. Era bem possível acertar as cabeças que iam e vinham. A raiva fazia as vezes da lenha, mas agora se sentia murcho. Fez pontaria. Bala na agulha. O dedo parando de tremer. Nem mesmo o ar escapava das ventas. O coração fazia uma carreira e o mundo mudava quando ele atirava. Bem sabia, dessa forma era impossível errar. Mas levantou o cano, com a alma de uma criança que espera um milagre, a alegria contida, melancólica, farejando a felicidade improvável no fim do dia. Como quando, de ano em ano, a mãe trazia algum brinquedo da venda. Já não pensava direito, bem sabia, não pensava. O querer seguia envenenando o seu sangue. A casa fora ninho, o bem mais precioso, mas agora, de leve, enxergava, com aquele instinto das orelhas que levantavam, predador arguto que sempre fora, as quatro paredes ruindo, irmanando-se às outras paredes da rua.

Passaram-se duas horas. Chegou a contar os minutos. Somando, talvez desviasse o tempo, voltando a controlar o seu pequeno mundo. Mesmo sem querer, afagava uma ponta de fé, desviando o pensamento de uma ideia definitiva.

A porta da rua abriu, deixando passar Diana e uma segunda pessoa. Conversavam depois do portão, aquela lenga-lenga cansada. De novo, não escutava as palavras, mas entendeu o gesto, dolorido detalhe que não custou um segundo, arruinado o seu castelo de nuvens, o beijo curto e molhado, prova de que precisava para ver descolorido o seu mundo.

 

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“Preciso ver Juliana”

O pensamento bateu na concha da cabeça, só, sem nada que o precedesse. Endireitou-se e percebeu arroz nos cabelos. Ao lado dele, descansava um prato de comida. Quando foi que pedira bóia? Não lembrava dessas coisas. Talvez tivesse dormido. Foi para a pocilga que chamavam de banheiro, lavou o cabelo, voltou para o bar.

Já era noite. Com um lapso imperdoável se esqueceu da hora. Novamente, percebeu os dois olhos que o espetavam. O homem careca, no entanto, já não parecia real. Descolava-se do mundo que habitava, sem tato, como uma entidade. Com as vistas arregaladas se aproximou desenhando passos de cobra. Enxergava o teto, detalhes do chão, e depois voltava para ele. Acabou sentando ao seu lado. Talvez não fosse mesmo de carne e osso. Esticou o dedo tocando a manga da sua camisa.

-Você deve ter cuidado. A morte é um boto cego do rio Socó; segue a gente sem que se perceba.

-Quem é o senhor?

-É preciso farejar, sabe? Às vezes não se enxerga com os olhos. Respirar fundo e sentir. Uma vez...

Acendeu um cigarro de palha e começou a contar uma história.

-Uma vez aconteceu com um moço, magro assim como você. Pensou tanto na morte que amanheceu duro, os ombros congelados. Dizem que morreu de medo.

Os dedos seguraram o copo quase solenemente e ele começou uma segunda história. Interessante isso. As palavras caíam umas sobre as outras. Havia pedaços que imaginava conhecer, e outros tantos enxergava, como num filme. O relato caminhava na passada exata do seu pensamento. Era uma coisa que não tinha fim, e logo se distraiu. O homem cutucou o seu braço, pedindo atenção.

-Olha isso, avoado de novo. Então escuta: esse perigo que espera, esse em que tanto pensa, vai bater na tua porta duas vezes. Duas vezes, nem mais, nem menos, mas porque não faz as coisas certas. Ainda dá tempo, dá tempo de acertar o pé...

Com a cabeça concordou, e depois, por educação, prestou atenção à conversa. O outro voltou ao conto. Falava de uma garota loira. Era toda graciosa. De novo, conseguia antecipar a matéria que escutava. Quase enxergava a menina, no contato com a mãe, com os amigos na escola. Não era como Juliana. Por alguns minutos, mergulhado na ladainha, esqueceu de si imaginando detalhes da segunda vida, a sua cama humilde, a alegria que tingia o seu rosto. Quando percebeu estava  novamente só. Aonde fora parar o homem careca? Levantou, procurou-o no banheiro, depois na rua. Nada. Mas tinha certeza, estivera conversando, não, escutando um homem careca.

Pagou a conta sem imaginar um destino certo. Viu chegar a Elizabética, que sentou emburrada num canto. Elizabete era vizinha sua há anos. Ela usava remédios para diabetes. Quando criança, os vizinhos da rua a chamavam de Elizabética. Diziam também que era puta, porque bebia em lugares como aquele, onde mesmo alguns homens não ousavam aparecer. Pedia sempre uma cerveja, não mais do que uma, e bebia consigo mesma, com o seu silêncio, com as histórias que não contava para ninguém.

Pisava meia parte do caminho, a exata metade, quando, de repente, o filho do Demo, António, o Pereba Seca, deu as caras no bar do Santo. A imagem representava o fim. O homem viera lhe buscar. Não podia ser coincidência. Não podia. Nada disso teria acontecido se tivesse se desviado do bar. Cada passo deixava o seu barulho. Cuspiu no chão desviando da imagem. O carniceiro tinha o rosto acinzentado, como se tivesse visto um fantasma. Sentou perto dele, sem parecer percebê-lo. Pediu bebida. Ficou espiando por uma eternidade algum detalhe da bota suja. Falou algumas palavras que ninguém escutou. Algo estava errado. Antônio parecia ignorá-lo. Bebeu o conhaque, levantou a cabeça, como se despertasse de um sonho ou pensamento, e só então virou para ele.

- Mas se não é Paulo Cândido, o Candinho da Conceição? Mal reconheci, está de um jeito, caído....

Lembrou da casa de pau a pique que ajudou a erguer, casa da brava Conceição, com outros homens pisando o barro ao som de cantadores. O menino o procurou por um tempo, conversavam longamente, até que uma hora se afastou, talvez a pedido da mãe.

-Até vejo você menino. Era ainda mais quieto do que agora. Mas não está bem, parece aquele povo que pega o bote para o outro mundo. Não estou falando dos homens dos terreiros, não, mas daquela gente que fica branca, respirando curto, se consumindo, perdendo a vida.

Vira-se e experimenta a bebida.

-Isso eu vi muita vez. Sabe o povo que vai morrer? Esse mesmo.

Paulo custava a responder. Engasgava com a própria saliva.

-O mundo tem mais morto do que vivo. Afinal, nossos avós, toda esse povo que veio antes, onde é que fica? Ele descansa na sombra da noite.

Bebeu de novo, e agora já não olhava para ninguém.

-Às vezes é melhor estar morto, ou estar em lugar nenhum. Por muito tempo pensei assim, e agora, de novo, tenho essa fé.

O outro fez que sim. Pensou em pegar o copo, mas descansou as mãos sobre o balcão.

-Não está mesmo com uma cara boa. Santo, me traz aquela pinga com canela?

O homem pegou a garrafa, virando o líquido com cuidado. Os lábios se entreabriram. Experimentou.

-É realmente muito boa.

O gole fez com que voltasse um bocado, relaxando. Antônio estava ali por uma encomenda ou por coincidência. Não havia uma terceira coisa. Olhou claramente e pela primeira vez a tábua pobre e gasta do balcão, os homens desanimados bebendo, a sombra escura depois da porta.

-Sim, é verdade, querem me matar. Se pelo menos eu visitasse Juliana.

Uma terceira vez se lembrava dela. Desceu um dos pés ao chão, preparado para partir. O matador tocou o seu ombro.  A mão escorregou, mecânica, até a cintura.

-Uma pessoa deve estar preparada para o seu destino, seja ele qual for. Sabe, gostava de conversar contigo. Lembra quando era pequeno? Mas você se afastou. Foi bom assim.

Talvez sem motivo pensou em Diana. Cuspiu no chão com ruído.

-Agora leve isso.

Sob a palma enxergou o objeto metálico.

-É fácil de usar. Você carrega e pá. O mundo fica de outra cor.

Os lábios grossos sorriam, mas subitamente ficou sério. O seu humor mudava a cada segundo, a cada palavra dita, a cada pensamento, no vai e vem de uma febre. Candinho parou observando.

-Vamos, pega.

Já perdia a paciência. Com um movimento de cabeça consentiu. Era o medo, um vago bom senso, a realidade dura quem falava. Agradeceu por tudo, despediram-se e ele foi embora.

*   *   *

Saguaçu era uma cidade ilhada, aninhada na concavidade da selva. Nenhuma estrada partia de sua periferia. A sua frente, larga, se estendiam as margens do Rio Socó, braços brancos que lançavam as barcas para a cidade grande, para os mais distantes cantos do Pará. Mas no trapiche, noite e dia, se amoitavam os homens do Seu Teodoro, não antes, mas agora, silenciosos a espera dele. Havia a possibilidade de se entocar na casa de um conhecido, por ali ficando semanas ou meses, surdo, cego e mudo, longe das janelas, de qualquer luz de esperança, mas de novo, se não fosse capturado, cedo ou tarde teria que partir. Enfiar-se nos matos era outra loucura, morte certa, porque não era mateiro e tampouco tinha a experiência do povo das tabas. Por tudo isso, só pensava no rio, o caminho d´água que guardava todas as soluções possíveis.

Escolhera uma estrada incerta para pensar num futuro duvidoso e igualmente irreal, mas agora via a luz se apagando, a medida em que se distanciava dos postes de iluminação. Os barulhos humanos diminuíram até afundar no chão. Suas únicas companheiras eram as cigarras. Escutava o ruído dos próprios passos, um empurrar de areia e nada mais. Sempre quisera andar sob um breu como aquele, mas tinha medo. Agora, porém, não sentia nada, ou antes, recebia o toque do vento escuro, dedos da vida a brincar com o corpo atordoado. Os passos invocavam ritmo, uma noção de sincronia ou equilíbrio. Respirava rápido. Percebeu uma mancha no caminho, perturbação do cenário monocromático. A mancha, entendeu depois, era um manto de claridade amarelada. De novo, não fazia sentido. A luz sussurrava uma voz. Aproximou-se até reconhecer o timbre masculino, uma ladainha morna ou angustiada que não botava medo em ninguém. Era preciso se aproximar para entender, e ele avançou alguns metros. Então percebeu a sombra do carro confinando a claridade. A fala esmorecia na dobra de cada frase, como se cansasse de lutar.

- Isso não pode ser certo. O carro tem gasolina e tudo.

A voz suspirou, ganhou alento.

-A gente se prepara e acontece essas coisas.

Havia uma presença no banco de trás, da qual captou a respiração soprosa.

- Fica tranquila, Rosa. O bebê não vai vir ao mundo nesse lugar nenhum.

O homem manobrava enquanto empurrava um carro que mal se movia, em descompasso com os suspiros da mulher.

-Sempre esse carro.

- Eu posso ajudar.

O motorista tremeu de susto. Na certa não o enxergava. Ficou um tempo, estático, olhando para o breu, o hálito ainda mais desconcertado.

- O que fazia escondido?

- Posso empurrar o carro.

Apenas moveu a cabeça consentindo. Não estava em condição de negar favores. As rodas deslizavam mais rápido, ainda que preguiçosas, semelhando pedras enormes empurradas por crianças.

- Empurra mais forte.

Os pneus faziam estalar o cascalho seco. Um movimento lerdo que se abafou com o soluço do motor. Subiu o cheiro de gasolina, as rodas brecaram e de novo avançaram num breve espasmo. O motor voltava a pegar, e o motorista abriu a porta do carona.

- Vem comigo. Vamos para a maternidade.

Dirigiam no escuro, e a luminosidade vinha do teto do carro, de uma lâmpada amarela que piscava, e piscava. Os faróis continuavam apagados. A cidade então se aproximou com as ruas acanhadas da periferia.

- Eu me chamo Firmino.

- Paulo Cândido, mas pode me chamar de Candinho.

Finalmente desceu os olhos para os bancos sujos e furados, para o motorista magro de cabelos crespos, para a moça de ventre largo, lenço preso a cabeça, revirando as vistas, quase inconsciente na dor, gemendo. A porta de Firmino simples e remendada, ameaçando abrir. Na agonia, esquecia-se de perceber as coisas. O hospital estava deserto a aquela hora da madrugada. Entraram correndo nos corredores frios, o pai empurrando a cadeira de rodas. Foi preciso que fizessem um cadastro, e Candinho pediu os documentos, encarregando-se da burocracia. Depois, no caminho ao centro cirúrgico, voltava a estar consigo mesmo. Escutou a conversa das enfermeiras, algo sobre a escala de plantão. Os pés se enroscavam no piso brilhante emitindo o barulho da borracha. Firmino aguardava numa cadeira azul, com os dedos enterrados no cabelo, esperando. O rosto escondido permanecia como uma incógnita. As cadeiras, idênticas, formavam uma longa fila, colada a parede do corredor. Solidário, sentou ao lado. À frente deles havia uma porta de duas folhas, branca. Todo o ruído os alcançava, de forma que era possível imaginar a cena. Chegavam os apitos do monitor, a fala calma, mecânica, compartilhando recados técnicos, o gemido da mulher, grave, quase sumindo, abafado sob um último som, agudo e no entanto poderoso, uma vozinha que reunia protesto e ressentimento, se fazendo ouvir nos primeiros instantes da existência. A família humilde trazia ao mundo um novo ser, e naquela exata hora outras centenas, milhares de casais concebiam uma nova criatura, com outro aspecto, destino diverso, variadas perspectivas sobre a Terra, mas ainda assim formas de resistência, aguerridas como os pais na maternidade, batalhando as conquistas de cada dia. A pulsão da vida se manifestava ali, mas também em ambientes inesperados, vencendo os mais inóspitos cenários. Nada interrompia aquela força. Quase tocava o organismo há poucos metros de distância. Não deixava de ser irônico: ameaçando deixar o mundo, assistia ao surgimento de um outro ser, como corpos que se tangenciavam em momentos tão diferentes. Vida e morte, fim e recomeço. Uma dança que repetia-se em todos os lugares do mundo.

Uma mulher de toca entreabriu a porta. Nesse instante, os barulhos chegaram mais intensos. O pai esticou o pescoço, tentando enxergar pelo estreito vão que se apresentou. Escutou que teria que esperar algum tempo antes de ver o bebê. Ouvia atento, recolhendo cada palavra derramada. Por fim, virou-se para o outro.

-Paulo, venha aqui.

Caminharam pelo corredor até a saída do prédio.

-Parceiro, vamos comemorar! Estou te devendo por toda essa mão. Não fosse você a Rosa não teria chegado ao hospital! Tem um boteco aqui perto, já fui um dia. Vamos beber pelo meu menino!

-Firmino, eu bem que queria mas não posso. Nem poderia estar aqui.

Os olhos do outro desceram, parando calmos no volume que Candinho escondia sob a barra da camisa.

-Enxergo tudo. Desde logo vi que está passando apuro. Reparei quando empurrava o carro. Mas quero ajudar. Sabe, pagar essa dívida de alguma forma.

-Tenho que sumir. Desaparecer. Partir sem olhar para trás.

A frase saiu de uma vez. Era o segundo momento em que repetia a ideia em voz alta. Falou e escutou a si mesmo. Dali surgiu um pensamento, colorindo o rosto do outro.

-Entendo. Deixa eu ver. Posso ajudar, sim. Mas que coisa, meu trabalho é correr o rio! Tenho uma voadeira que vai servir para nós dois.

Depois passou coordenadas, detalhes de um endereço. Combinaram a hora de um novo encontro. Abraçaram-se com calor. Demorava, mas percebeu o homem de chinelo que, curioso, espiava de um dos bancos. O estranho se afastou, não sem antes voltar a cabeça, guardar com os olhos o que via.

-Amigo, preciso ir. Até amanhã.

Acenaram mais uma vez. Agora imaginava um único objetivo: visitar Juliana. Já recriava os gritos do seu Gaspar, todo o teatro, mas palavra alguma o impediria de tentar. Assim, caminhava para os lados da Redenção. Os detalhes do encontro, as mais variadas possibilidades, eram um filme no pensamento. Andou muito até avistar a casa de madeira. O mato rodeava as paredes, mas no espaço de setenta metros havia uma grama bem cuidada, ferragens, um barco de ferro dividido ao meio. As luzes dormiam apagadas. Sentia o picar do mato, mas organizava as ideias. Tinha coisas para fazer. Decidir-se a bater na janela, que agora parecia estar tão longe. Há vinte metros talvez. Debatia-se dentro da própria indecisão, amoitado e com sono, pensando tanto que acabou adormecendo..

                                    6

Ele era só mais um, não mais que um corpo, anônimo e nu, na esteira do esquecimento. Deslembrava da casa, do carro velho, das poucas coisas que tivera em vida. Já não incomodavam a compleição gorda, as perebas nas costas, a cabeça que repetia, paciente, as exatas e mesmas ideias. Vencido, caminhava como os outros, uma multidão sem nome e lembranças, por algum ou por nenhum caminho, centenas, milhares de vultos, sonâmbulos, manada sem força e sem vontade.

“Mas será? E se eu tivesse?”

O raciocínio rebobinava, reproduzia a exata fórmula, de novo e mais uma vez, sob a mesma composição. Discurso velho de insucesso e culpa, a questão de uma vida já acabada. Os olhos então levantaram um pouco mais, encontrando o garoto crescido.

“E você aqui? Como foi acontecer, Candinho?”

De quem era aquele sonho? Já não sabia a resposta. Depois de tanto tempo, avô e neto se reencontravam, ainda que em pensamento.

*   *   *

 

Agora começava. A conversa de um pássaro repetindo a mesma frase. Ficava assim por um longo tempo. Então era um outro bico que falava. Outra espécie? Sempre quis entender os passarinhos. Havia ainda esse ruído úmido de vai e vem; o suspiro breve, econômico e calculado de um terceiro; a fala grave do macaco. Bem-te-vi também. E as palavrinhas pequenas, esfareladas, de um outro bicho.

Escutava, quase estática, sem conseguir se mover, na cama, eternamente só. Essas vozes chegavam cedo. Farejavam a janela, escorregavam no vão embaixo da porta. A casa ficava povoada. As cadeiras, a cama, o pinguim de plástico sobre a geladeira. Assim eram as manhãs, para ela e para as pessoas que despertavam nasbordas da selva. Mas agora, pela primeira vez, cuidava de entender cada detalhe.Assim ficou pela madrugada, à espera do seu Candinho. O que foi que aconteceu? , pensava. A cabeça repetia as visões, horríveis, de outros moços desaparecidos, mas ainda assim confiava. Ser mãe é se enganar, disse consigo mesmo, na cama, em voz baixa. Mas o filho sempre fora tão sossegado.

De manhã voltaria à delegacia, pediria uma hora com o delegado, com aquele homem que fazia caretas, balançava cabeça, e não respondia nada.

                                                                                                     *    *    *

Ele se lembra de como aconteceu. Nas primeiras horas chegava, bêbado, a padaria do seu Genésio. Isso acontecia tão pouco. Mas na semana concluíam o ensino médio, e Bento, o seu amigo de tanto tempo, sugeriu que comemorassem.

Andavam de madrugada e a luz começava a abrir as portas. A borda das árvores teimava em cochilar por mais um tempo, mas o dia seguia desabrochando. A areia dos caminhos era o que se iluminava primeiro. Descansava ainda, sob as copas, a conversa dos animais noturnos, ilhados no conforto da escuridão. Os postes se apagaram mas já era possível identificar as formas. Assim conseguiram encontrar o caminho.

Portas fechadas, esperavam a chegada do padeiro. Na calçada, Juliana arregalava os olhos. Raramente virava para o lado. Candinho entendeu que se impressionara com ele. Mais talvez, sim, só mais tarde percebeu, havia uma fina película, invisível, membrana que os separava, como se evitasse deslocar-se até certo ponto. Na verdade, mal se movia. Somente então, relaxado, reconheceu o sentimento alheio, a vulnerabilidade diante de um homem embriagado. O companheiro não percebia nada. Eufórico, já contava piadas há horas. Candinho nunca fora valente. Em momentos de incerteza, o seu rosto se fechava. Mas precisava fazer alguma coisa. A percepção se agitava quase como uma necessidade. Isso nunca lhe acontecera antes. Aproveitou o resto de sorriso, sequela de uma brincadeira boba de Bento, e falou.

-Não precisa ficar assim. Eu não mordo.

Ela tomou um susto, corou, depois cobriu a boca envergonhada.

-Eu me chamo Candinho.

-Prazer, Juliana.

A conversa continuou por mais um pouco, e nos dias seguintes se encontraram no mesmo lugar. Todas as manhãs Candinho aparecia na padaria, religiosamente na mesma hora. Mas depois de duas semanas Juliana desapareceu. Invisível, mandava cartas, recados através de amigos. Ele descobriu onde estudava. A garota, no entanto, começava a abandonar as aulas. Com a morte da mãe, seu Gaspar tinha ficado meio doido. Bebia de dia e de noite, proibindo que a filha saísse de casa. Com algum esforço descobriu onde morava, passando a visitar a sua janela à noite, sempre de madrugada. Os encontros eram raros e calculados.

E assim conversavam. Agora esperava a alguns metros da casa de Juliana. O velho não gostava dele. Nunca soubera porque agia daquela forma. Despertava agora com as primeiras luzes da madrugada, na frente do lugar que tanto conhecia, revivendo essas lembranças queridas. Quando foi que caíra no sono? Repetia-se a visão da noite anterior, o mesmo cenário, apenas iluminado com a claridade do dia.

Mas precisava falar. O que diria para Juliana? Que tinha que ir embora, não por um dia ou dois, mas para sempre. Sugeriria que viesse com ele. Até então não pensara a respeito. Talvez faltasse coragem para o convite, mas sabia ser a sua única e última chance.

O seu primeiro passo dividiu os galhos. Os pés desciam lentos, acarinhando o chão, mas o seu movimento fazia barulho. Quando cruzou com as últimas árvores sentiu-se nu, vulnerável. Então escutou o trovão, ruído cravando espetos nos ouvidos. Logo depois eles tremiam, doloridos. Correu no corpo uma dor, uma tontura, um frio que o visitava sem aviso. Seria a morte? Era assim que acabava? Baixou a cabeça, e na penumbra não enxergou nada. Respirou, sentiu a brisa e percebeu que continuava. Ainda estava ali, consciente, sobre o chão. Pegou a pistola, presente de Pereba Seca. O seu maior problema é que não enxergava ninguém. Também não tinha habilidade com as armas.

Ele escutou. Pensou enxerga a cabeça se escondendo no ângulo da parede. Talvez... Mas pulou no chão, assustado, antes do segundo disparo. Não precisava que explicassem o que devia fazer. Recolheu braços e pernas e correu para dentro do mato.

-Vâmo, corre atrás do homem!

Agora gritavam sem cerimônia, mas ele não prestava atenção. Disparava depois desse contato íntimo com a morte. Pááahh... ele corria....pááahhh...continuava trocando as pernas.

-Não deixa escapar!

A aflição esvaziava os seus pensamentos. Não imaginava nada, tentando tão somente escorrer para um oco de anonimato. O peito batia sem fôlego. Nesse caminho não olhava para trás. Sentia que precisava atravessar o mundo. Durar um minuto, depois outro, depois outro. Tentava escapar como uma caça. Quando, enfim, parou, afundado em um brejo desconhecido, estudou os barulhos nas suas costas. Três, talvez cinco ainda o procuravam pelo mato, escutava as suas vozes, longe. O medo da morte multiplicara a sua capacidade. Não era mais forte do que os assassinos. Eles estava ali, por perto, apenas esperando um movimento seu. Escutava as conversas, mas não virava a cabeça. Talvez saísse vivo dessa primeira armadilha. Tempo depois, com a claridade, percebeu o corpo intacto e mais uma outra coisa: na correria deixara cair o revolver do Pereba Seca.

                                                                                                  7

Gostava de voltar para lá, para a sala de janelas altas, de móveis empoeirados e de madeira boa. Sentar sobre o couro vermelho, da cadeira antiga, como tudo que havia ali. Rodeava-se de uma matéria velha, mas que não se vendia em nenhum lugar. O lugar era escuro e fresco como uma caverna. Nunca estivera em uma caverna, e no entanto imaginava que elas fossem assim.

Sentiu um frio na barriga no aguardo da encomenda. Não esperava nada quando o capataz topou com ele, pedindo que viesse para a fazenda. Nem titubeou: o homem pagava bem. Chamava para si o trabalho de luxo. Sempre recebia o que queria, e ainda existiam as facilidades.

-Pois então, seu Teodoro, há muito tempo não te vejo.

-Faz sentido, Antônio. Esses tempos são bem outros. Matar é uma dificuldade. Mas preciso de você agora, depois do trabalho porco que fizeram com o Bento.

Então era verdade o que diziam do rapaz. A mãe do Bento aparecia na delegacia, se descabelando, pedindo justiça.

-Quero que desapareça com Candinho, que leve o corpo para muito longe.

Ele soltou uma gargalhada gostosa. Como era estranho o mundo. E pensar que, horas antes, conversavam no Bar do Santo.

-O que é engraçado?

Seu Teodoro, no seu porte,  exigia respeito, nas palavras, na coluna ereta, nos olhos que não se desviavam, quase fechados, lentes de telescópio estudando.

-Nada não. É a coincidência. Passei por ele essa noite.

Pensou um pouco. Gostava do moço, mas não era parente nem nada. Não tinha ninguém. Estava livre para fazer maldades, e depois disso precisava matar.

-O coronel dá licença.

O braço se esticou alcançando o copo sobre a mesa. Virou devagar o liquor de cajá. Enquanto desfrutava, pensava nos próximos passos. Gostava desse momento de poder, quando dependiam do seu consentimento. Bem podia ir embora. Ninguém no mundo o ameaçaria. Seria sarna para se coçar. Agora precisavam dele, esperavam a resposta.

-Está bem, mas depois do servicinho quero um pouso. Me entocar. Coisa de poucas semanas.

-Bom que fale nisso. Arranjei uma palhoça longe, longe. E Antônio, por favor, fique ali pelo menos por um mês.

 tempo. Vou precisar de umas garrafas de cachaça.

Acertaram os valores. Minutos depois se cumprimentavam, partindo cada um para o seu lado.

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*   *   *

Essa era a lembrança. Voltava de hora em hora, como uma pedra no sapato. Mesmo agora, num momento vazio. E se não estivesse ali, na mesma hora e lugar? E se tivesse ficado quieto, exatamente como todo o mundo? De nada adiantava pensar essas coisas, por que afundara os pés, marcando o chão num caminho sem volta, num minuto desviando-se da vida normal, do dia a dia de todo o mundo, aquele que segue morno e sonolento até a velhice, num capricho virando para a esquerda, marchando até um beco escuro.

Ele voltava para casa na tardinha quase noite. Poucos carros passavam levantando poeira. Longo era o percurso até a sua casa. Pensava em algum assunto, mas a ideia se desfez, e ele ficou quieto, espiando os homens que discutiam do outro lado da estrada. Não fazia por bisbilhotice. Toda a gente de Saguaçu tinha cuidado nas ruas abandonadas, e a hesitação custou o tempo de reconhecer o tuxaua do Rio Curvo rodeado de peões. Um deles, tinha certeza, era um capataz do Seu Teodoro. Gritos de um lado e de outro teimavam em subverter a conversa. Não era novidade a animosidade entre empregados da madeireira e kayapós. Uma última luz pintou a lâmina de um terçado, mas esse brilho, pálido de nascença, consumiu-se na barriga escura. Depois houve um vai e vem e o corpo dobrou se apagando. Teve enjoo, mas por medo não desviou os olhos. Custou a entender que não podia ficar, recuando até os dedos de uma árvore. Ali ficou até muito tarde. As vozes já não se revezavam no caminho. Só então voltou para casa. Quando conseguiu estava escuro, mas no seu peito já não havia lugar para o medo. Tudo o que restava era a lembrança, aquela que o acompanharia para sempre. Vomitou muitas vezes, e tarde da noite chegou no abrigo de pau a pique. Recusou a comida, lavou-se, foi para o quarto. Conceição estranhou, pensando enquanto assistia a novela. Na cama, sozinho com a própria alma, a imagem voltava ainda mais clara, repetindo-se no vazio de sonhos. O vazio da cabeça organizou-se num pensamento: teria que falar com o Bento. A decisão apareceu aos poucos, criando corpo, juntando os pedaços, clara e pulsante, como uma coisa viva. Logo cedo estava na fazenda do Seu Teodoro. Gritou quando viu o amigo. Os olhos fugiram para além da porteira. Ali, as folhas corriam para atravessar a estrada, crepitando, como crianças atrasadas caminho do colégio.

-Vem cá. Ontem eu vi uma coisa.

E foi então que ele contou cada pedaço. A forma como falava, com perplexidade e náusea, talvez criasse uma segunda cena. O rosto do outro se tingia de outras cores. Ao fim acabou dizendo, meio rindo, não porque achasse graça, mas porque era assim que Bento respondia a todas as coisas.

-Vamos contar para o delegado.

Pensaram, pensaram, queriam mesmo que acontecesse. Mas com o passar das horas a vontade ficava cada vez mais fraca. À tarde caminhavam lentamente, como se quisessem parar pelo caminho. Enfim, chegaram a delegacia. A porta entreaberta, que não mostrava nada, apenas sugeria a sala escura, um segundo mundo, com códigos e regras que desconhecia. O delegado Bastos fumava folheando papeis amassados.

-Podem entrar, menino. Menino não. Nossa, como cresceu. O tempo passa.

Ele falava sem olhar os seus olhos. Só mudou quando ouviu o depoimento. Então, olhou-os com cuidado, dos pés à cabeça, com uma atenção que não aparecera antes.

-É certeza?

Candinho e Bento continuaram calados, mas as máscaras dos rostos contentavam a pergunta.

-Mais alguém sabe disso?

-Nós e mais ninguém.

Não era verdade. Contara também ao seu Valter, o antigo empregado do seu Teodoro. O seu Valter era uma alma mansa e boa, um homem velho que calculava os minutos para se aposentar.

A ruga que dividia a testa se suavizou, e o homem subitamente parecia outro. Imaginara um amigo de infância, qualquer amigo, um amigo inventado.

-Candinho, essas coisas são muito tristes, a acontecem tanto aqui. Tem certeza de continuar com isso? Sabem, isso não para agora. Daqui há meses ou dias é outro coitado que desaparece, e vocês tem a vida de vocês. Tem a sua mãe, tanta coisa para fazer. Qual é mesmo o nome da namorada?

Ele tinha certeza. Aquilo era um feto podre, uma lombriga na barriga. Movia, parava, fazia de novo. Acompanharia-o para todo sempre. Precisava se livrar da imagem ou pelo menos tentar. Era coisa que não pensava; apenas sentia, como o caldo de feijão da mãe. Puxar a massa das suas tripas parecia um gesto de coragem, a solução dos problemas sem começo e fim, problemas que se revezavam, dia após dia, desde o seu nascimento. Sim, tinha problemas. A repulsa agora abraçava todo o universo. Ela tocava a sua casa humilde, a noite que dormia, pobre de sonhos, na cama dura, o modo triste da mãe, essa que antes era guerreira brava, o pai que não conhecia, o caminho de horas que percorria, todo o dia a pé. O cenário sem cor. Por tudo isso, tinha certeza. Registrou a denúncia e foi embora com o Bento.

O delegado bateu na sua porta na noite seguinte. Conceição estranhou mas ficou calada. Bastos contou que não haviam encontrado o corpo, pelo menos no lugar apontado por Candinho. As buscas continuariam, mas a Amazônia era um território imenso abraçando os seus mortos. Os olhos do policial já não apareciam calmos como antes, mas arregalados, olhos de ombros largos. Repetiu a pergunta da véspera. A fala, no entanto, não era a mesma, e as palavras por algum motivo guardavam uma textura espiculada. Os sentidos mal notaram aquela diferença, faziam um sacrifício para pensar, e a resposta continuou a mesma.

O delegado não voltou a aparecer na sua casa.

 

*   *   *

 

 

Onde foi que ela havia errado? Desesperava-se. Devia estar perdendo alguns fios de cabelo, mais alguns, entre outros velhos, brancos e quebrados. O cérebro badalava como um sino e era impossível pensar. Todo mundo já sabia do sumiço do seu Candinho, a polícia, o Diário de Saguaçu, as vizinhas, até a dona Valda, aquela faladeira.

Afinal, onde foi que ela havia errado? Por que motivo não dava as caras há mais de um dia? Ele nunca fizera isso. Nem faltava às aulas nos tempos de escola. É verdade que usara um pulso firme. A palavra mais repetida em todos aqueles anos fora não. Não faça isso, não faça aquilo. Um dia percebeu. Mas que outra coisa poderia fazer? Os seus parentes, irmãos e primos, viviam sem eira nem beira, desempregados, bêbados. Candinho não, Candinho acordava cedo para trabalhar. Era educado com todos, e tinha aquele sorriso, o sorriso que encantara Juliana. Paulo Cândido tinha algo diferente. Mas talvez tivesse sido dura. Bem poderia ser essa a razão do apuro que passava agora. Verdade mesmo, é que ela, todos os seus, escutaram não por toda a vida. Pobres que eram, privados de tanta coisa, ajustavam-se  a cada dia, recomeçando, para não ficar pelo caminho.

Fumava um cigarro quando abriu a porta de casa. A rua estava tranquila, mas sentia que algo não estava bem. As razões se escondiam em algum lugar. Vizinhos passavam olhando da calçada. Com certeza gente mexeriqueira, que gostava de espiar o padecimento alheio. Na certa, todos sabiam, pela sua boca mesmo. Agora nem o cigarro trazia paz, nem mesmo as árvores enormes que observava do outro lado da rua.

Talvez fosse mesmo sua culpa. Afinal, devia cuidar do menino, da mãe que mal andava, de Eva, a irmã querida que tomava remédios. Uma tarde a Olga lhe falara: “ Amiga, você está perdida”. Bem poderia ser verdade. Não era a primeira vez que falavam isso. Anos atrás, sua tenacidade era conhecida em toda a vila. Lutava como bicho, por si e pelos que descansavam sob as suas asas. Era assim, pelo menos no passado. Na retina, cristalina, descansava a tarde em que brigara pela praça da comunidade. Um homem de paletó falava com propriedade.  Gesticulava com os dedos duros. Ela não entendia nada, apenas que as crianças brincavam na praça, que o seu Osvaldo finalmente saía de casa, descansando sob as árvores. Não conseguia responder a aqueles argumentos, mas entendia as pessoas, a necessidade do povo da rua. Os músculos do seu pescoço se contraíram, ela arregalou os olhos e começou a falar. Aconteceu algo único. As pessoas olhavam para ela, curiosos. Prestavam atenção ao que dizia. Por um segundo, teve vontade de chorar, porque reconheceu-se gente. Nunca tinha parado para pensar nisso, mas por quase toda a vida percebeu-se ignorada. Talvez passasse desapercebida, como uma figura anônima, um pássaro pendurado no galho. Naquela tarde eles olhavam, interessados. Houve um silêncio, e ela sentiu-se viva. As palavras povoavam as frases de uma forma que nunca imaginava que acontecesse, não para ela, moça pobre de poucos estudos. Falou por cinco, dez minutos. Quando calou, estava resolvido. Não tiveram coragem de retrucar. A praça seria deles novamente, e assim ficou, até os dias de hoje.

Mas agora batiam na porta de ferro. Dois toques secos causando o ruído apenas suficiente. Entreabriu o vão entre a folha metálica e o batente.

-Oh Conceição, você sabe do Candinho?

Depois do muro esperava Antônio, o Pereba Seca, o corpo largo ligeiramente curvado, braço direito apoiado à parede. A máscara do rosto parecia relaxada. A aparição mais inesperada subitamente se ligava a um sentimento de morte.

- O que foi que você fez com o meu Candinho, ô desgraçado?

-Mulher, não precisa disso tudo. Vim perguntar. As coisas podem ser mais simples, ninguém se machuca.

Ele saiu, ou melhor, dobrou o corpo para fora, as pernas grossas plantadas no cimento gasto. Podia correr, empurrá-lo para fora, pular o muro, mas queria saber do filho. Nada a tiraria dali.

-Não dormiu aqui. O que aconteceu com o meu menino?

-As pessoas falam, falam. Difícil acreditar. Por mais que a gente não queira, sempre acontece assim. Mas é por isso que eu carrego essa tranqueira.

Puxou o zíper, abrindo uma mala longa de nylon.

- O que você fez com o Candinho?

Os olhos da mãe se arregalaram, voltava a mulher da praça, aquela que ainda descansava nas retinas. Esticou os dedos agarrando a orelha de Antônio. Cuspiu no rosto castigado e seguiu puxando o ouvido, com tamanha força que dividiu a pele. Pereba seca recuou acertando-a no rosto, e no movimento despencou de costas no chão. Os ossos do dorso se anestesiaram antes que percebesse a dor, aguda, descendo pelas pernas grossas. Teve dificuldade para se levantar. Os pés vacilavam. O plano não corria como esperado. Ninguém mais o respeitava. Nem Diana. Ele tinha músculos, isso ainda era verdade. Agarrou o braço de Conceição, arrastando-a até a mesa do quintal. Os dedos calosos sentiram os estalos secos. Respirou fundo. Quase sentiu o perfume da esposa. Abaixou sobre a mala, voltando com duas facas, a primeira com lâmina larga, a segunda, pontiaguda.

-Aprendi essa coisa. Depois passei a usar no churrasco. Tudo depende da força do golpe. Você martela a espinha, essa parte grossa da faca, e o fio faz todo o resto. Osso, pele, cartilagem.

Fez uma demonstração, e o golpe dividiu o dedo. A extremidade rolou com o seu rastro úmido, despencando no chão. A mulher deu um berro.

-Você é como Diana, como todas as mulheres do mundo.

-Desgraçado, o que aconteceu com o Candinho?

Conceição já esquecia a dor. Enxergava o filho e nada mais. Pereba bufou, entediado. Estendeu a lâmina pontiaguda, cutucando a pele escondida atrás do queixo. Parecia tentar livrar-se de uma coceira, e no vai e vem todo o chão se cobriu de sangue.

-Tempo perdido.

Alguém tocou a campainha.​

- Antônio.

-Entra.

 O homem magro estendeu o olhar, interrompendo a curiosidade na metade do caminho. Tropeçou no degrau da calçada.

-Não precisa. Seu Teodoro quer falar com você. Parece que é importante.

-Tá, mas vai ter que esperar. Tenho que dar um jeito nessa porcaria toda.

8

“ Ele não volta nunca mais”.

Deitada, contava as ripas da parede. De onde estava, a cabeça rolada do travesseiro, era possível calcular as tábuas do chão até o teto. Contava, parava, recomeçava. Conhecia-as nos mínimos detalhes. Sabia que a quarta era sulcada em uma estreita fissura, e que a quinta guardava redemoinhos escuros. De tanto ficar ali inventara um nome para cada uma delas. As janelas deveriam continuar fechadas, e desta forma ela atentava para  cada barulho, reinventando o seu mundo cego. Quando os ouvidos se perturbavam ela fechava os olhos e imaginava. Havia um moço na casa ao lado, alguém entre onze e vinte anos. Conversava com todos se divertindo, e para esse ela deu o nome de Risada. Uma moto também aparecia nos fins de tarde, mas o seu motorista falava pouco. Nunca entendeu direito as suas palavras. Depois de um silêncio ele partia com o seu zumbido de vespa.

“Nunca mais”.

Nunca era uma palavra forte. Significava uma eternidade. O que seria uma eternidade? O tédio muitas vezes parecia enorme, eterno, gigantesco. Talvez a eternidade fosse continuar, no mesmo quarto, por todos os anos da vida, contando as mesmas ripas, pensando as mesmas coisas. Se Candinho desaparecesse, restaria um vazio enorme, do tamanho da palavra nunca.

Lembrou de um filme de bang-bang que assistiu anos atrás. Havia um deserto e o vento levantava a poeira no cenário desolado. Há tempos o pai não deixava que assistisse a filmes, e ela então ficava no quarto, mas ainda assim lembrava. Sempre e nunca se pareciam com as imagens do bang-bang, do silêncio, do assobio agudo, as pedras e montanhas paradas no mesmo lugar. Se Candinho fosse embora, talvez se transmudasse em outro, exatamente como a vó Ana. Candinho aparecia uma vez por semana, batia na janela, ela abria, conversavam. As palavras rastejavam como formigas subindo a madeira. O pai falava agora que Candinho não voltaria mais, unindo-se a outros tantos desaparecidos de Saguaçu. No seu mundo de fantasia havia gente morta e gente viva. A vó Ana habitava o cemitério atrás da igreja, mas de vez em quando apareciafazendo perguntas. Queria saber se estava comendo, se dormia bem, conversa que sempre se repetia. Se Paulo fosse embora, talvez continuasse, aparecendo para ela em conversas inventadas, preocupado como a avó.

 

*   *   *

 

Jose Carlos. Conhecia-o há alguns anos. Baixo, careca, pigode escuro e pontiagudo. Em Saguaçu todas as pessoas se conheciam. Eram almas, cada uma delas, drenada pelas mesmas águas, pelo mesmo rio, folhas presas a uma mesma terra. As pessoas vinham de longe, enroscavam-se nas histórias e não podiam mais escapar. Cativavam-se pelo sonho de uma vida nova, de um pedaço prometido de chão. As árvores eram miragem, atraíam como Iara, arrastando para o leito úmido. No fim tudo era engano, exatamente como as águas, como o amor, como o sonho que se nina sem saber porque.

Mas José Carlos, uma vez ele viera pedir ajuda. O motor da voadeira falhava. Antônio fez o que pode e o barco voltou a riscar o rio. Não quisera nada em troca. E agora, agora o barqueiro roubava a sua mulher.

Podia capturá-lo, arrancar os seus olhos. Estourar os globos com a ponta da faca. Talvez as coisas se ajeitassem. Não, isso não resolvia nada. O mal estava feito. Não havia reparo.

Absurdo. Sentiu um vento frio que só ele percebia, vontade de chorar. Nem bem sabia o que era isso. E agora ela ia e vinha, lavando uma maldita louça atrás da janela, muito tranquila da vida. Abriu a porta.

-Oi bem. Porque não voltou ontem à noite? Foi o trabalho, foi? Vou te preparar a tapioca.

Mexia nas panelas com a maior tranquilidade. Tentou estudar aqueles olhos de mulher da taba, mas os olhos não diziam nada. As mãos carregaram a frigideira, depois descansaram na cintura.

-O que foi que você fez ontem à noite, me diz.

Não era possível. Era Diana quem perguntava calmamente. Seria ciúmes ou apenas contracenava? Levantou da cadeira de supetão, e os seus dedos calosos apertaram os lábios cor de jambo.

-E o que é que você anda fazendo noite e dia, mulher?

Chupava o ar como se lhe faltasse o fôlego. Desabou sobre a cadeira. De novo a raiva. A ferramenta de trabalho dava as caras e logo desaparecia. Sem ela era nada ou quase nada. Apenas imaginava um castelo de areia que se desfazia. Não tinha vontade de cortar a carne macia de que tantas vezes cuidara. Opostamente, desejava vê-la de novo ainda algumas vezes. Nem o querer trabalhava ao seu lado.

-Sabe, eu já matei tanta gente.

Olhou-a com as vistas bambas, sem ódio, sem sentimento algum. A pálpebra direita tremia. Depois disso, foi embora batendo a porta.

9

O chão queimava os seus pés e Candinho bem sabia a razão, sugerida no ritmo em que corria o sangue pelas suas veias. Demorava-se além da conta em Saguaçu. Mas o que podia fazer? Nunca saíra da vila, a comunidade onde nascera e crescera, habitando por quase vinte anos. Tinha, porém, os passos todos planejados. Havia um último lugar a visitar, uma pessoa a ser vista antes de que fosse embora. Se tudo corresse bem, em menos de uma hora estaria longe. Escutava a conversa dos pássaros que nada sabiam dos humanos, seres pequeninos e livres para mudar de rumo. Aquela grande floresta que o envolvia pedia que continuasse. No entanto, não partiria sem a benção da mãe. Era estranho que estivesse há tantas horas longe dela. Isso nunca acontecia. Sentia que eram parte de uma mesma coisa. Se dividissem o mundo em dois, ela ocuparia metade desse cosmos, meio terra, meio céu, meio passado, meio amanhã. Por todas aquelas horas, em cada minuto, pensou na mãe. Agora, sim, podia libertar-se, deixando a vilazinha pela primeira vez na vida, e sentia que os seus calcanhares se congelavam, justamente por não tê-la ao seu lado.

“ Mas ela entenderia a minha necessidade”.

Sim, ela sempre preocupou-se com a sua segurança. Era um dos seus maiores interesses: vigiar os seus passos a distância. Imaginava que Conceição precisava descansar, era hora de relaxar as pernas cobertas de varizes. Ainda assim, haveria de ficar angustiada, pela essa última vez, quando soubesse da morte do Bento, dos riscos que ele próprio corria agora.

No dobrar da rua percebeu, longe, o movimento na frente da casa. Carros de polícia. O que estaria acontecendo? Apressou o passo, mas reconheceu o menino magro de bigode, Tico da Ribeira, plantado na calçada oposta, olhos semicerrados e duros, fazendo as vezes de um muro. Foi atravessar a rua, sentindo a mão do outro, pressão impedindo que continuasse.

-O que é que foi, Tico? Eu tenho que ver a mãe.

-Eu sei, mas não é seguro. Tem um povo amoitado...

Existia dessa gente em todo o lugar. Qualquer acomodado, pago, dava esse tipo de recado. Mas havia uma segunda história. Quando o amigo soube de Bento foi direto a casa de Paulo Cândido. Ali percebeu os carros de polícia, o sangue arrastado pelos sapatos. Muita gente parava para espiar. A casa era uma armadilha, e de nada ajudaria se Candinho soubesse a verdade. Talvez não aquela verdade, e naquele momento em que lutava, manco, por continuar. Foi um assunto sobre o qual refletiu bastante, até que, enfim, resolveu investir na pequena mentira, ou ignorâcia, poupando o amigo que iria embora de qualquer jeito, vivo ou morto. Por tudo isso pensou nos próximos passos, onde ficar, que contribuição daria. Parou a alguma distancia, calculado ponto, esperando pelo  moço.

Tico se equilibrava entre a vida e a morte. Vendia pó, sumia, voltava. Esbarrava em tiras e traficantes. Tinha a habilidade de persistir. Estava num lugar e em todos ao mesmo tempo.

-Eu sei do risco, mas preciso ir.

Olhou para o céu que se fechava na ameaça de uma chuva.

-O que precisa é continuar vivo, Candinho. Só isso e mais nada. Sei de coisa que nem imagina. Eles estão assim, ó... -Os dedos magros se afastaram como dentes.- Prontos para dar o bote.

Candinho avançava polegadas, trombava, tentava de novo, parando nas costelas magras e irredutíveis.

-Preciso falar com ela.

-Fala. Passo tudo para dona Conceição.

Ele tentava novamente. Não aceitava ir embora, queria tanto que Tico esmoreceu, por um segundo apenas, compreensivo, filho que um dia fora, mas entendeu a ameaça, maior, pairando no ar.

-Rapaz, some daqui. Se não vai acabar igual o Bento. Bora, bate asas, desaparece dessa vila! Mas escuta...

Segurou o seu braço.  A sua voz agora tinha o peso de uma ordem:

-Mexi os meus pauzinhos. Arranjei um barqueiro. Se entoca até a noite. Ele vai te levar para longe, quando o movimento sossegar.

-Obrigado, amigo. Não vou precisar. Tenho uma pessoa que me leve.

Tico consentiu com um movimento de cabeça. Abraçaram-se calados. Nenhuma palavra parecia necessária. Apenas os olhos, as sobrancelhas caídas, diziam tantas coisas nesse último gesto. E assim afastaram-se para sempre.

Candinho andava com a cabeça atrás. Pensava na mãe, na conversa que não teve. Aceitou contrariado a sugestão do amigo. De qualquer forma, poucas eram as suas escolhas. Corria por uma vala de limites dados, imaginando desembocar no mar, outro lugar onde fosse possível recomeçar, com possibilidades, livre e de pés descalços. A hora era agora. Em minutos reencontraria Firmino. Então, imaginava, tudo seria diferente.

O dia chegava na sua hora mais incerta, ameaçando em  minutos dissipar-se na noite. Pensou nessa ironia. Também a vida que teve poderia consumir-se dando espaço a outra, feliz ou desastrada, mas ainda assim diferente. Sentia-se nu nesse deslocamento, mas andava pelas ruas de Saguaçu uma última vez. Lembrou do endereço dado. Em minutos, chegaria a casa nas margens do Rio Socó. No vazio do trajeto passou a infância, os tempos de escola. Pensou também no vô Nésio, em Bento, em Tico, em Juliana, finalmente na mãe. Olhou para a placa na outra esquina. Cometera um engano. Teria de andar ainda alguns minutos. Mas que coisa boba, errar um trajeto tão fácil! Um calafrio correu pelo corpo, mas não parou um segundo. Pensou uma última vez na casa onde passara tantos anos. As paredes baixas, o corredor onde por anos jogara bola com Bento, o jardim cuidado da mãe. Não tivera a chance de voltar. Ah, lá estava a rua de terra, a porteira, a morada enrolada no mato. Foi entrando sem se anunciar. Tinha as paredes cor de ferro, encardidas, com marcas onde se cavava a cheia do Socó. Firmino estava atrás, cuidando de algumas cordas, ao lado da voadeira.

-Bom que chegou agora. Rosa está no hospital com o bebê. Tudo muito sossegado. Agora é a hora. Reze o seu padre-nosso e aproveitamos a oportunidade.

Sussurrou as palavras, depois olhou para o céu. O sol tinha cor de leite. O branco, corado, se acinzentava em variações monocromáticas, no contato com as nuvens que trombavam sobre uma garoa começando naquela exata hora. Por que a chuva, e justo no fim de tarde? Era a visão do começo do mundo, ou talvez do final dos tempos. De novo, o que significava aquilo? Continuou observando, como se não acreditasse, mas a imagem era tão real como a mão que fechava agora, e entendeu que não estava delirando.

- Lá em cima está meio confuso, mas o rio parece tranquilo, ao menos por enquanto. Por isso é melhor não perder tempo.

-Mas por que a pressa, pessoal? A gente corre tanto por nada nessa vida, não é verdade?

Subiu uma terceira voz, lenta e grave a um só tempo. Não percebeu ninguém. Estavam os dois, ele e Firmino. O timbre morno, seguro como os fenômenos da natureza,  era no entanto familiar, despertando um tremor nas tripas que se arranhavam. Um vulto desviou dos troncos alcançando os dois. Antônio.

-Mas deu trabalho para chegar aqui.

Empurrou um ramo que virava na sua direção.

- A Conceição não abriu a boca. Tive que dar corretivo. Agora está quieta para sempre... Tudo a toa, porque o seu Teodoro, tarde, avisou. Ontem à noite, no hospital, escutaram esse papo de vocês dois fugirem pelo rio. Foi mesmo muita sorte.

Candinho dobrou-se como um caramujo. A retina pulsava, pintando o chão, as pessoas e o vermelho. Não enxergava mais nada. Curvou cuspindo o vômito.

-Sabe, Candinho, eu nem queria, mas é o meu trabalho. Também não sinto nada. -

Tocou o ombro do outro, -nada mesmo, como se as minhas veias não tivessem sangue. Mas sempre tenho sorte. Essa conversa do hospital. Cê vê? Dá pra imaginar?... Não, talvez eu não tenha mais tanta sorte. Mas vamos para o rio. Se acheguem. Quem liga o motor?

Firmino andava com passos pela metade. Observou Paulo Cândido, avariado, e ajudou-o  a subir na voadeira.

-Oh seu Pereba, tive filho agora. Não tenho nada a ver com isso tudo.

-Verdade, mas o trabalho é assim. A gente tem que dar conta de cada coisa. A bem dizer, o barco, o rio, tudo ajuda.

O ronco do motor engoliu a conversa. Os corpos se seguraram para não cair. Timidamente se afastavam da margem. A água descia do céu, leve como um lenço, escorrendo no rosto das pessoas. A vista da margem era bonita, mas eles não enxergavam mais nada. Candinho, sim, voltava aos poucos ver.  As cores ainda se confundiam. Vivia uma raiva. Como um boi, jogou o corpo sobre Antônio.

-Catinga, mijo, merda, ferida suja. Não quero mais fugir. Vou te afundar nesse rio!

-Calma, ainda não tá na hora.

O braço grosso apartava os seus movimentos.

-Segura o seu amigo. Essa doeu. Ainda assim, não tenho raiva. Firmino, me diga. É esse o seu nome? Como é passear todo o dia por esse rio?

Firmino não respondeu. Apenas deixou de manobrar o leme, e vazio de pensamentos abraçou o outro. Agora era Antônio quem conduzia para as águas mais fundas.

-Mas que situação. Bem, eu falava, cada um deve gostar do que faz. Estou satisfeito. Gosto disso, de matar as pessoas.

A voadeira deslizava a cinquenta metros da primeira margem. Um pássaro passou acima das cabeças, molhado e procurando abrigo. A proa se levantou vencendo a resistência da correnteza, e nesse instante o barqueiro pulou. Sustentou-se um longo tempo no ar, desaparecendo depois totalmente sob as águas. Demorou um minuto  ou mais para aparecer, movendo os braços, longe, acima da superfície. Os membros se revezavam na distância, com a aparência de barbatanas. Antônio fechou um olho, fez pontaria por alguns segundos, e enfim levantou o cano.

-Melhor assim que foi embora. Agora fica tudo mais fácil.

Os dedos derrubaram a carabina. Pereba Seca pegou com as mãos uma grossa corda.

-Sabe, Candinho, nem queria matar a tua mãe, mas ela não falava nada. Tive que fazer. Contigo é a mesma coisa. Sou pago para isso.

Com um movimento envolveu o pescoço de Paulo Cândido, que continuava transtornado, no rosto uma careta perplexa. Seus braços ofereceram resistência, cedendo logo à vontade do outro. O corpo foi dobrando sob o peso do matador, até a cabeça mergulhar na água. Escapar das mãos enormes parecia impossível. Submerso, enxergava a lamina crispada da superfície das águas. O mundo era um cenário verde claro, entremeado de bolhas, do ar que saía da sua boca, vida que o deixava aos poucos. Não podia ser diferente. Sempre fora a caça, por todo o tempo, desde menino, fugindo de alguma coisa. Da doença, da morte, do trabalho duro. Agora dissolvia-se no rio que era sustento e sombra para os pequenos seres a volta. O laço se estreitou e, enfim, as suas mãos já não ofereciam resistência. Em um último transe, enxergava uma cena do colégio. Estava atrasado para a primeira aula. Subia as escadas para o andar superior. As paredes simples estavam cobertas de cartolinas, trabalhos escolares. Olhando para cima, pode ver metade de uma porta, e esse recorte expunha o céu com a sua claridade infinita. O céu do Pará, a última visão da sua vida.

Mas essa derradeira imagem se borrou. O laço afrouxava sem avisar. A realidade se intrometia no sonho. Outra cena se sobrepôs à primeira. De baixo, enxergou o rosto de Antônio, que agora se virava, absorto. Os olhos não se desviavam de um ponto fixo. Por um segundo, já não parecia mais se importar com ele.

“ Mas será possível?”

Pereba Seca não acreditava no que via. A aparição acontecia naquela exata hora, quando terminava uma encomenda. As narinas se alargaram vastas, fuças de predador. Estava hipnotizado. Do outro lado do Socó via passar a rabeta de João Carlos. Riscava as ondas com pressa. Soltou o laço e entortou o leme, acordando o motor. Paulo Cândido subiu, derrubando o tronco sob o casco do barco. Vomitou um monte de água. Antônio, absorto, já não o percebia. Era movido por uma vontade enorme. Desejo de extinguir outra pessoa, razão das suas dores e insucessos.

Mas de onde estava era possível enxergar o céu, Pereba Seca, e mais nada. Só a custo arrastou-se conseguindo sentar. Então percebeu os barcos se aproximando.

A voadeira vinha com pressa. O barqueiro, algo espantado, parecia não entender. Agora estavam próximos. Rabeta e voadeira quase se tocavam.

- Você sabe, é uma coincidência, eu precisava mesmo falar. Coisa pouca, uma palavrinha.

Parelhas as barcas, Antônio se agaichou, levantando com a carabina. Deu um único disparo derrubando o outro. Depois recolheu a corda, pulando para a rabeta. Agora era João Carlos que enforcava. O barqueiro oferecia alguma resistência.

-Como eu dizia, tenho mesmo muita sorte. Vou te apresentar para esse terçado, um velho amigo meu. Com ele cortei os dois bagos de Zé Carneiro.

Tentava pescar a arma da cintura, mas João Carlos debatia-se resistindo à esganadura, e dessa forma ficava entre uma tarefa e outra.

Candinho não entendia a cena, mas percebeu uma única coisa: pela primeira vez estava só, abandonado na voadeira. Respirou fundo um ar de que se esquecia. Os dedos correram para o motor, e o barco voltou a se mover. Com o empurrar do leme, migrava em direção oposta. Olhou para trás. Pereba Seca ainda se ocupava do outro. Agora distanciavam-se com velocidade. Contou os segundos. Um, dois, três. Seria possível? Por enquanto acreditava que sim. Estava acontecendo. A chuva parava de cair deixando restos de umidade. O céu, exatamente igual,  sugeria subitamente uma segunda coisa. Um outro mundo, onde caminhasse com os pés descalços. Desconhecia o futuro, mas apostava nele agora, como um devir que precisasse ser alimentado, um minuto após o outro.

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